Segunda, 23 Maio 2011 16:38

OS REAIS DONOS DOS LIVROS

Renato Grandelle
O GLOBO
*RIO DE JANEIRO, 14 DE MAIO DE 2011*

*O engenheiro e militar Benjamin Constant interessou-se por um livro de
álgebra. João Caetano, ator, procurou um volume da “Enciclopédia Metódica”.
Manoel Antônio de Almeida, consagrado com o romance “Memórias de um sargento
de milícias”, distraía-se com obras sobre flores. O trio teve presença
registrada (e frequente) na Biblioteca Nacional, cuja abertura para o
público completou ontem 200 anos. A instituição, fundada em 1810, teve, em
seus primeiros meses, acesso franqueado apenas à Família Real. O privilégio
caiu por ordem do então príncipe-regente D. João VI, que dispôs as 60 mil
peças do acervo a pesquisadores da Corte — desde que autorizados por ele. A
trajetória dos frequentadores entre as estantes será lembrada, na semana que
vem, em uma mostra no saguão da biblioteca.

Além dos ilustres, a instituição contava com uma penca de indesejados — e
não fazia questão de esconder seus nomes. Avisos como “prohibida a entrada
de Aarão Ackermann e David Vieira, por haverem retalhado e subtrahido
paginas de livros que lhes foram dados para consulta (...)” já foram comuns
na entrada da biblioteca.

— Volta e meia acontece de folhearmos uma obra e ver uma janelinha no meio
da página. Era alguma coisa, provavelmente uma gravura, retirada com
canivete — conta Mônica Rizzo, diretora do Centro de Referência e Difusão da
Biblioteca Nacional.

Os prefeitos, como eram chamados os administradores da coleção, precisavam
lidar com outras tentações. Livros (e até jornais) eróticos deviam ser
alojados no inferno, um espaço cuja consulta era proibida. A seção não
existe mais, embora obras condenadas judicialmente — como a biografia
não-autorizada “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo —
continuem vetadas aos leitores. E, durante o regime militar, fichas como as
de Karl Marx teriam “desaparecido” do acervo.

Acervo destruído por terremoto

A Real Biblioteca Portuguesa, primeiro nome da instituição, inspirava
respeito — ainda mais pela rapidez com que fora montada, na metrópole, em
Portugal. O acervo teve de ser reconstruído do zero em 1755, quando o grande
terremoto de Lisboa dizimou a coleção. A Coroa enviou emissários para a
Europa inteira atrás de novos livros. Uma contribuição involuntária veio dos
jesuítas, banidos do reino pelo secretário de Estado, o Marquês de Pombal.
Seu acervo, deixado para trás, foi incorporado ao de seus detratores.

As estantes, novamente cheias, atravessaram o Atlântico em 1810, dois anos
após a Família Real fugir para o Brasil. Seu primeiro abrigo carioca foi o
hospital da Ordem Terceira do Carmo, no Centro, onde hoje é a Rua Primeiro
de Março. Até chegarem ao edifício atual, na Avenida Rio Branco, passou-se
um século — e, no meio do caminho, em 1858, seus livros foram alojados na
Rua do Passeio, no mesmo prédio que hoje abriga a Escola de Música da UFRJ.

— D. João fazia aniversário no dia 13 de maio, e era praxe ele aproveitar a
data para assinar medidas importantes. Em 1811, uma delas foi a abertura da
biblioteca para pesquisadores autorizados — explica Mônica. — Fazia-se um
pedido por escrito. Esta formalidade caiu apenas três anos depois, quando o
acesso foi liberado para toda a população.

Não que a biblioteca tenha sido invadida por leitores ávidos. Afinal, a
cidade contava com apenas 60 mil pessoas, e o número de alfabetizados era um
mistério.

— Cerca de 90% sabiam assinar os seus nomes, o que não quer dizer que todos
conseguiam ler os livros — ressalta o historiador Nireu Cavalcanti. — Mas,
ainda assim, a abertura da biblioteca à população foi um presente para a
cidade. Tratava-se de uma das coleções mais respeitadas da Europa.

Pela sua formação ligeira, em apenas meio século, a coleção tinha de tudo um
pouco, embora seus destaques fossem mapas e informações sobre as colônias.
Estas, aliás, ficavam devidamente enclausuradas em uma seção restrita, junto
a outros documentos de Estado.

**A realeza não ia à biblioteca, mas mandava os criados buscarem o que lhes
interessasse. D. Pedro II, notório intelectual, era o que mais fazia uso do
serviço. Também foi ele, aliás, o maior doador individual da história da
instituição. Boa parte de seu acervo foi para lá quando ele partiu para o
exílio europeu, após a proclamação da República. Uma fotografia de sua
coleção, retratando sua mulher, a imperatriz Teresa Cristina, está entre os
dez documentos mais consultados da World Digital Library, site que reúne
documentos de diversas bibliotecas do mundo.

A entrada da instituição na associação mundial, assim como o seu próprio
site, são amostras de que a Biblioteca Nacional não briga com o futuro. A
digitalização do acervo foi iniciada em 1982 e não termina tão cedo —
afinal, 100 mil novos títulos dão entrada na instituição anualmente, e as
fichas manuscritas do século XIX ainda não foram aposentadas.

— Os funcionários eram pagos por ficha de livro produzida. E precisavam ter
boa caligrafia — pondera Mônica. — O catálogo produzido permanece como
consulta, porque, por mais que olhemos para trás, o futuro também exige
atenção.

**O prédio da Rio Branco ficou pequeno diante de tantos livros. O acervo de
9 milhões de obras também ocupa um espaço do Palácio Gustavo Capanema e um
terreno na Avenida Rodrigues Alves, na Zona Portuária. Os três funcionários
que inauguraram a biblioteca, em 1810, deram lugar aos atuais 403. Atendem
de universitários a pesquisadores veteranos, passando por carnavalescos,
sempre em busca de inspiração para a confecção de alegorias e adereços.*

*A elite da literatura brasileira dos últimos dois séculos flanou pelos
corredores da biblioteca — alguns, inclusive, como funcionários. Cecília
Meireles foi professora do curso de biblioteconomia. Sérgio Buarque de
Hollanda chegou a diretor interino. Raul Pompeia também ocupou o cargo
máximo da casa.

Outros mortos se fazem ainda mais presentes. Os fantasmas da biblioteca
mereceram até reportagem da revista da instituição. Os seis andares dos
armazéns são os preferidos das assombrações. Um dos mais frequentes seria o
próprio D. João — perambulando pelo patrimônio que ele legou ao Brasil.*