Sexta, 16 Abril 2010 12:44

Cultura chega a galope



As crianças da Escola Classe Cariru, no Paranoá, fizeram festa ontem para um grupo de cavaleiros que, há quase um mês, percorre o sertão visitando colégios e vilarejos. Com livros para serem distribuídos e liderados por Carlos Oscar Niemeyer, neto do famoso arquiteto, eles emocionaram os estudantes. E viveram um momento especial ao cavalgar pela cidade que há 50 anos mudou os rumos da história do país.

Os cavaleiros que carregaram sonhos

Como antigamente, 16 homens, sob o comando do neto de Oscar Niemeyer, saíram de Niterói (RJ) a cavalo e tomaram a rota de Guimarães Rosa rumo ao Planalto Central. A missão: levar livros e emoção às crianças

Marcelo Abreu


Às 14h30, a expedição chega à primeira parada no DF: cena de filme

O menino mal acreditou que o neto daquele homem que aparece no livro estava ali. A mãe do menino também não. Tampouco a avó. Mas o neto do homem, aquele que aparece no livro do menino, chegou. E levou 16 companheiros, todos a cavalo, que vieram de muito longe. Eram 14h30 quando a tropa, tocando um berrante, entrou naquela escola de paredes verdes, a 80 km de Brasília, no caminho de Unaí (MG). E levantou poeira na estrada de terra. E o neto tão esperado desceu. E o menino perguntou, perplexo, a alguém que estava ali perto: “É ele o neto?”.

O menino que mal conhece Brasília ficou cara a cara com o neto do homem que ergueu os palácios e os monumentos da terra imaginada por JK. E, ao som do berrante, entrou na sua escola. Levou esperança a um monte de gente que vive tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe da terra onde, um dia, segundo a profecia de dom Bosco, “jorraria leite e mel.” O neto do homem que ergueu os palácios suntuosos da capital federal fez o menino sonhar. Só isso já teria feito valer a pena aquela viagem toda. O neto do homem que aparece no livro do menino tem certeza disso.

O administrador Carlos Oscar Niemeyer, 45 anos, neto do arquiteto genial, cumpriu o pedido do avô para o cinquentenário de Brasília. Em 2007, no centenário do velho Oscar, o neto lhe perguntou: “Vamos fazer uma cavalgada em sua homenagem?” O carioca Oscar olhou para o neto e devolveu, bem-humorado: “Nem a cavalo eu ando”. Mas ele gostou da ideia. E o incentivou: “Então, junte um grupo e leve livros a quem não tem muito acesso a eles”. O neto, carioca do Leblon, ouviu o conselho do avô. Em 2008, juntou amigos, formou uma associação, pediu apoio de empresários e editoras e saiu estrada afora.

Em junho de 2009, a aventura começou. Carlos Oscar e um grupo de cavaleiros partiram do Museu de Arte Contemporânea, em Niterói (RJ), com destino ao Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. O segundo destino da viagem seria das Minas Gerais ao Planalto Central, pela rota de Guimarães Rosa, o incomparável autor de Grande Sertão Veredas. E tentariam chegar a Brasília em abril, no mês do aniversário de 50 anos da capital. Na bagagem, além do berrante e da sanfona, livros, muitos livros. Era essa a grande missão dos cavaleiros da cultura.

A primeira etapa foi vencida. O grupo percorreu estradas e lugares inimagináveis. Os cavaleiros ouviram histórias de uma gente muito longe do Leblon. Uma gente que aprendeu a fazer da vida a certeza do impossível. E se emocionaram com tanta simplicidade e com a acolhida em cada escola rural onde pousavam. Cinquenta e oito mil livros — novinhos em folha — foram doados a todas as crianças do ensino fundamental dos lugares por onde estiveram.

Mas ainda faltava chegar à terra onde o avô do cavaleiro construiu a cidade moderna. Em 19 de março, a segunda etapa da aventura. Partiram de Belo Horizonte com destino a Brasília. Venceram 850km em estrada de terra. Deixaram para trás as Minas Gerais e desbravaram Goiás. Na tarde de ontem, entraram no DF. Invadiram a Escola Classe Cariru.

Homenagem
O menininho do começo desta história, Gilmar Zanin Júnior, de 9 anos, estava ali, no portão, com os olhos esbugalhados, à espera do sonho. O neto do homem sobre quem ele tanto estudou estava ali. “Eu matei a minha curiosidade. Fiquei muito emocionado. É bom demais conhecer gente nova”, diz. A casa dele, numa fazenda nas Quebradas dos Guimarães, fica muito longe de Brasília. E repetiu, como se estivesse em transe: “Eu conheci o neto do Oscar...”.

Os cavaleiros — funcionários públicos, produtor rural, comerciante, empresário, administrador, médico, que tiraram férias para cumprir a missão — foram recebidos como heróis por aquela gente simples. A vice-diretora da escola, Semíramis Melo, 42 anos, emocionou-se. Diante dos homens que trouxeram sonhos para suas crianças, ela disse, segurando um microfone com voz embargada: “Sabemos o valor de cada livro e de cada página que vocês nos doaram. A visita de vocês foi mais que esperada. Nunca pensamos que uma aventura, vivida tão longe, passasse tão perto de nós”.

E, olhando para o neto do homem que o menininho de sua escola esperava, disse: “Escrever a história é escrever a oportunidade de estarmos vivos todos os dias. Que esse dia fique registrado na sua memória como o dia que marcou a história da Colônia Agrícola da Zona Rural do Cariru”.

Igualmente comovido, Carlos Oscar falou de valores morais para aquela plateia de meninos e meninas e seus pais e avós humildes. “A nossa capital está sempre em foco. Se os pais ensinassem mais às crianças sobre ética, a comemoração dos 50 anos seria diferente.” Aquela gente o aplaudiu. A agricultora Francisca Maria dos Santos, 66 anos, avó de Emily, 6, aluna da escola, vestiu roupa nova para esperar aqueles homens chegarem. “Minha neta me chamou. Disse que eu não podia perder.” Santilo Lázaro Ribeiro, 87, também caprichou. Colocou paletó, chapéu e lenço de cavaleiro nas costas. “Sou devoto do Divino e folião (refere-se à festa do Divino Espírito Santo). Tô aqui por compromisso e devoção”, contou, com o inseparável cigarro de palha.

“A bênção, vovô!”
Professores e alunos, em menos de três semanas, se prepararam para a visita dos cavaleiros. As crianças estudaram e pesquisaram sobre o começo de Brasília. E suas personagens mais importantes. No corredor da escola, foram montados estandes, contando um pouco do início de tudo. Havia a pré-história de Brasília, antes de a capital existir. Tainara, de 10 anos, contava-a ao neto do arquiteto com ares de professora.

Depois, os cavaleiros passearam pelos monumentos da capital. E chegaram às pessoas importantes da construção de Brasília. Lá estavam, representados por três alunos, o arquiteto Oscar, o presidente JK e o urbanista Lucio Costa. Eric Costa, 11 anos, de paletó azul emprestado pelo pai da professora, era JK. Guilherme Pereira, 9, virou Lucio e Michael Brasileiro, 10, encarnou um Oscar todo falante. Cada um contou a Carlos Oscar o que sabia sobre Brasília. O neto do verdadeiro Oscar, emocionado, tomou a bênção ao avô de mentirinha. Michael não acreditou. Parecia sonho.

Os cavaleiros conheceram ainda a Biblioteca da Família, inaugurada graças à iniciativa da Casa do Saber; visitaram o recém-inaugurado laboratório de informática; assistiram à apresentação de catira, uma dança folclórica de Goiás, e de uma peça dos alunos e ouviram música de raiz, cantada por homens da comunidade rural. O representante comercial Leonardo Assunção, 47 anos, carioca do Leblon, foi um dos cavaleiros da aventura cultural. “Tivemos a possibilidade de fazer o bem sem interesse político ou financeiro. Rodei o mundo, estive em 18 países, mas nada foi igual a essa viagem”. O filho dele, Thiago de Paula, 22, formado em marketing, o mais jovem da turma, endossa: “Todos nós voltaremos diferentes depois dessa experiência”.

No fim de todas as homenagens dessa gente tão simples, de um lugar tão improvável para aquela gente do Leblon um dia chegar, o neto de Oscar falou ao Correio: “ Isso aqui é um exemplo de cidadania. A educação ninguém tira de ninguém. É o que ficará para essas crianças e ajudará todas a voarem”.

Depois de 23 escolas visitadas nesse país de contrastes e abismos sociais e 120 mil livros doados, os cavaleiros da cultura — que se transformaram numa entidade de utilidade pública registrada — prometem não mais parar. “Ano que vem, vamos pegar a estrada de novo”, avisa Carlos Oscar, o idealizador da saga.

O menininho que esperou que ele chegasse contará pra todo mundo que um dia conheceu o neto do homem que projetou “aquelas coisas bonitas” da cidade que ele mal conhece — apesar de ser tão perto do mundo em que vive. Essa viagem mudou todo mundo. Essa gente que chegou montada a cavalo. E aquela outra, que os aguardava como se esperam heróis para realizar sonhos. E isso, definitivamente, não tem preço.

Fonte: http://www2.correiobraziliense.com.br/cbonline/cidades/pri_cid_176.htm