PARTICIPANTES: Vivianne Veras; Iza Antunes; Adelaide Côrtes; Patrícia
RESENHA:
O livro conta a história do desmoronamento de uma família nigeriana de posses, extremamente religiosa, que fora estruturada com base no controle, na violência e no abuso do pai, Eugene. Ela é contada sob o ponto de vista da filha mais nova de 14 anos, Kambili, que nos mostra essa manipulação familiar, que se estendia até a comunidade ao seu redor, tendo em vista que o pai era um empresário rico e detinha um grande poder econômico sobre a localidade. Kambili enxerga o mundo da forma limitada devido regime ao qual foi submetida pelo pai, mas mesmo assim consegue captar algumas informações aqui e ali e perceber, em pequenos detalhes do dia a dia, coisas estranhas que a incomodavam, já que muito pouco obtém da mãe e apenas uma pequena dose de Jaja, seu irmão. Nada é discutido na casa ou contestado, que não seja predeterminado pelo pai, que via a família como um objeto. Contudo, após conseguirem passar alguns dias na casa da tia Ifeona, irmã do pai, algo muda para sempre nos jovens irmãos. O silêncio é rompido e uma brecha do véu que os encobria, separando-os da realidade do mundo em que viviam se abre e mudanças dramáticas acontecem.
“Em Nuska começou a romper o silêncio. A rebeldia de jaja era como os hibiscos roxos experimentais de tia Ifeona: raros, como cheiro de liberdade, uma liberdade diferente daquela que a multidão, brandindo folhas verdes, pediu na Government Square após o golpe. Liberdade para ser, para fazer.”
O romance mistura ficção com realidade, não tanto autobiográfica, mas de pessoas e da vida diária da autora que é nigeriana. Mostra a complexidade de uma sociedade que no passado foi dominada e vilipendiada por colonizadores, e hoje vive ainda conflitos internos como resultado de diversos golpes militares pelo poder, em meio a uma desmedida corrupção.
A autora deve ter presenciado muitos acontecimentos retratados no livro, talvez por isso tenha conseguido colocar tanta vida nele e nos remete a um mundo desconhecido que é a Nigéria e a África com um todo. Ela parece fazer um paralelo entre a dominação familiar que sofre a protagonista com a dominação do seu próprio país, que começou com os portugueses e depois passou para os britânicos e só tendo sua independência em 1960. O texto coloca de forma forte e realista o mal que a imposição cultural dos colonizadores faz a um país e a sua cultura, tal como o mal que o pai fez para sua família, principalmente os seus filhos. As expressões culturais são taxadas como de segunda categoria e primitivas; a religião natural é desrespeitada; toda a leitura é substituída pela estrangeira, a começar pela definição da língua inglesa como língua oficial. Toda essa agressão à cultura e aos costumes são repetidas no ambiente da família, e o pai faz questão de separar os filhos de todo o convívio com a vida nigeriana, que é representada pelo avô que nunca trocou seus valores pelos estrangeiros.
Outra crítica que faz é sobre o papel da religião. Como missionários religiosos, cristãos em especial, se instalaram na África. Vêe com a intenção de ajudar esse povo pobre e supersticioso por meio da catequização mais que em realidade impõe sua religião em detrimento às crenças locais. A forma agressiva dessa internalização é replicada na imposição do pai à mulher, aos filhos e à sua comunidade (as pessoas o seguem mais pelo poder econômico que o pai exerce do que pela fé em si). Seja na forma de colonização, seja na conversão religiosa, vemos o perigo da visão única da realidade sendo imposta.
Mas há uma resistência, sempre haverá. O avô e a irmã, Ifeona, não concordam com a forma de vida da família e por isso foi banida por Eugene. O convívio com eles é extremamente restrito. Mas é com esses personagens que temos acesso a real cultura nigeriana: festas religiosas, alimentação típica, suas crenças e rezas. Ifeona se converte ao cristianismo, mas mesmo assim não corta a sua ligação com a cultura e crenças do seu país, o que demostra como é possível a convivência do que é de fora com o que é local. Ela consegue ter várias visões. Esta opção nunca foi cogitada por Eugene, do mesmo modo como não foi pelos colonizadores.
Outro destaque é de como as crianças são facilmente influenciadas e até doutrinadas pelos pais. A família era totalmente limitada pela religião e controlada por padrões de perfeição. A família de Ifeona, por outro lado teve acesso à modernidade estrangeira, mas com valores africanos fortes e criados com liberdade de escolha. Enquanto Eugene só tinha uma visão do mundo, a da irmã estava aberta para o mundo. A religião para ela era apenas uma forma de expressão da fé, ao passo que para o pai era usada para encobrir sua personalidade cruel, até um pouco sociopata, tal como fizeram os missionários que o educaram.
O livro é brilhante em demonstrar o choque cultural que viveu a Nigéria e outros países africanos, e o choque de Kambilli, que venerava o pai, sua única fonte de informação do mundo perante a realidade (para a qual ela sempre esteve aberta, em seu subconsciente). Apesar do quão cruelmente os colonizadores se impuseram sobre a cultura desse país, quase aniquilando-a, este tenta se reerguer, mesmo que com dificuldade. Assim também deve fazer Kambili. Recomendamos fortemente para quem quer ter outra visão da África.